Ao mesmo tempo, os conhecimentos científicos e tecnológicos encontram-se globalmente disponíveis, a uma escala sem precedentes. Compete aos cientistas salvar o mundo da catástrofe, transformando-o num local em que todos os seus habitantes possam viver? A resposta não oferece dúvidas. Não existem soluções rápidas neste domínio, mas temos de enfrentar as questões se não quisermos ceder a uma tecnocracia hipócrita, por um lado, ou a um movimento anti-intelectual em princípio hostil a qualquer forma de ciência, por outro.
A ciência moderna é um produto da cultura moderna ocidental, que por sua vez, ajudou a moldar a cultura moderna global. A ciência é, afinal, uma actividade humana, e são os seres humanos que produzem e aplicam o conhecimento científico, em interacção com o mundo material, quer se encontrem num ambiente natural, no preparado de uma experiência laboratorial ou nas páginas das revistas científicas. Nem os cientistas mais monomaníacos são o produto exclusivo da sua formação científica e do ambiente científico que os rodeia, também são membros da sociedade em que vivem e que lhes inculca um conjunto de valores culturais mais ou menos específicos.
Defender esses valores está implícito no trabalho científico em que os cientistas estão envolvidos, e que, ao apresentarem os seus conhecimentos científicos e os produtos que deles resultam, ajudam a reforçar os valores que interiorizaram. Ao falar-se em ciência moderna, quer-se referir à actividade científica e à organização institucional que se desenvolveu inicialmente na Europa, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Foi nesse período que os cientistas acorreram em massa aos laboratórios, passando a ser apoiados pelo Estado, estabeleceram fortes laços com a indústria e começaram a exercer uma influência significativa nos programas de acção social e estatal.
Entre todas as formas de conhecimento, foi o científico que atingiu o mais alto estatuto. A ciência ganhou proeminência no sistema universitário em rápida expansão e secularizou-se. Antes, a ciência ou, mais precisamente, a filosofia da natureza, ocupava-se sobretudo do funcionamento do universo de Deus; os filósofos da natureza investigavam a natureza enquanto criação de Deus e regulada por leis escritas por Deus. Os seres humanos podiam contemplar a natureza e explorar os seus frutos, mas só Deus tinha a liberdade de estabelecer os termos em que a natureza funcionava e cedia os mesmos aos homens.
No século XIX, a ciência passou a ocupar-se da compreensão e da manipulação da natureza, de pleno direito; fossem crentes ou não, os cientistas já não se referiam a Deus nas suas publicações, mas sim ao mundo natural e aos sistemas experimentais, cuja manipulação intencional revelava as características fundamentais da natureza. A intervenção e a manipulação são especificidades essenciais da ciência moderna. É, em primeiro lugar, pela intervenção experimental que a ciência moderna cria as suas representações da realidade.
Os conceitos teóricos e os modelos ganham conteúdo quando funcionam sob condições específicas e dentro de limites preestabelecidos seleccionados pelo investigador; deste modo, os electrões, os micróbios, o ADN, entre outras situações, são visíveis e reais aos nossos olhos. Por outro lado, o conhecimento gerado pela ciência sai do laboratório para o mundo e é transformado em actividades específicas no domínio da ciência aplicada e da tecnologia.
Embora a tecnologia possua uma história própria muito longa, a noção de ciência aplicada só ganhou corpo ao longo do século XIX. Vimos na ascensão da indústria química, da indústria agro-alimentar com os seus fertilizantes químicos, os primórdios das indústrias farmacêutica e alimentar, a telegrafia, a electrificação, entre muitas outras inovações. A partir de então, a ciência e a tecnologia têm-se interligado cada vez mais, e têm provocado impactos cada vez mais fortes na natureza e na sociedade, que mudaram, para melhor ou para pior, durante o processo. É claro que a utilização dos recursos para benefício do homem é tão antiga como a própria humanidade.
O vestuário, a construção de abrigos, o uso de utensílios, a agricultura, as fogueiras, a fermentação das uvas, a produção de queijo e tudo o demais, são meios a que os seres humanos recorrem há muito para introduzir o conforto e o prazer nas suas vidas e no ambiente que os rodeia. A novidade da ciência moderna e o seu casamento com a tecnologia, reside na utilização de teorias científicas como instrumentos de previsão, controlo e alteração da natureza. No decurso do processo, a sociedade humana não se contentou em explorar a natureza e passou a manipulá-la e, de facto, a alterá-la.
Num número crescente de áreas científicas, o natural passou a ser apenas um entre muitos outros estados susceptíveis de ser produzidos. Foram as escolhas feitas em relação a esses estados susceptíveis de ser produzidos que ajudaram a criar o mundo em que vivemos. Esta revolução não se processou isoladamente, mas em contextos sociopolíticos específicos. A ciência moderna nasceu e passou a infância entre revoluções; a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e as revoluções de 1848 em França e nos estados alemães. Cresceu no seio dos movimentos nacionalistas unificadores do século XIX, que deram origem ao moderno estado-nação.
No mesmo período, o poder político e económico começou a transitar das classes de proprietários da terra para os novos industriais e para uma classe média recém profissionalizada e em expansão. Os novos cientistas pertenciam esmagadoramente à classe média profissionalizada, o que se reflectiu nos valores que adoptaram. Além disso, é curioso que os novos cientistas experimentais tinham acorrido ao laboratório, a par da corrida dos novos industriais às fábricas. A produção de conhecimento e de mercadorias transformaram-se.
Um dos valores considerados fundamentais neste período foi a natureza do progresso, que era um conceito novo. Onde antes existira o equilíbrio natural, no século XIX tudo passou a estar em desenvolvimento; a sociedade, a economia, o conhecimento, a ciência, a vida na Terra e o próprio universo. Uma nova noção de conhecimento e bem-estar humanos, ambos em permanente evolução, tornou-se essencial para a teoria política e social, para a filosofia e para a ciência.
A lógica do desenvolvimento foi construída nos alicerces da ciência moderna e do moderno estado-nação. E esteve também nas raízes de todo um espectro de movimentos políticos gerados no século XIX e no século XX, da democracia liberal ao comunismo, do socialismo ao darwinismo social.